Um dia qualquer
Num mundo cheio de pontos de vista privilegiados, eu não
estou exatamente satisfeita com o meu, ainda assim, parada aonde sempre fico,
consigo ver uma coisa ou outra que acho interessante, ou pelo menos me
diverte.
- Doce ou salgada?
- Doce ou salgada? – o homem à minha frente perguntar pra
mulher ao seu lado.
- Escolhe você.
- Escolhe você –
ele rebate.
- Foi você quem me convidou.
- Foi você a convidada, então, escolha.
- Ai, não sei.
- Sabe sim.
- Doce.
- É a minha preferida também.
Entrego um saco médio de pipoca doce para a mulher e tento
mascarar um sorriso. Eles são tão tipicamente O Casal no Segundo Encontro que
não demorou nem o tempo de aprovar a transação do cartão platinado do cara para
eu descobrir qual era a classificação deles. Sei que pode parecer ruim que ao
invés de estar colocando milho na máquina, eu fique aqui pensando de forma
categórica na vida das pessoas. Mas é o que eu faço. Trabalho no quiosque de
pipoca do cinema e daqui gosto de observar todo o tipo de gente.
- Vocês têm manteiga light?
- Infelizmente não.
- Como assim?!Que absurdo! Vocês tinham que trabalhar com
uma opção light.
- A opção mais light que
a gente tem é a sem manteiga.
- Você tem permissão para falar comigo dessa maneira? – a
menina ruiva vira as costas ultrajada e sai batendo o pé.
Vou pegar uma coca-cola para outro cliente. O liquido
pálido, muito mais claro que o original, cai da máquina enquanto eu percebo que
não adianta me estressar. O que a menina ruiva disse não foi pessoal. O mau
humor tem se tornado uma emoção recorrente até mesmo nos cinemas.
- Aqui vende café?
- Temos expresso.
- Me dá um. Duplo – ele irrompe em um bocejo monstruoso sem
se preocupar em por a mão na frente – Talvez seja melhor dois.
Apertei os botões e esperei pelo melhor cheiro do mundo.
Pode ser que eu esteja exagerando, mas toda vez que o café se preparava para
sair e levava seus costumeiros dois segundos e meio, a expectativa me fazia ter
certeza de aquele era o melhor cheiro do mundo. Então ele inundava o quiosque e
eu tinha vontade de sorrir. Às vezes eu sorria mesmo. Por exemplo agora.
- Obrigado.
Aquela era a última sessão da noite, então eu comecei a
limpar tudo que tinha ao alcance dos meus braços e imaginação até dar a hora de
fechar. Acabaram-se as pessoas, com isso começa o tédio.
Uns 27 dias depois do dia qualquer
O fechamento e a abertura do quiosque são as horas mais
monótonas pra mim. E hoje, no começo de um novo dia, não é diferente. O cinema
abre ao meio dia, só que na maioria das vezes a primeira sessão frequentada é a
da casa das duas. São uma e meia.
Eu o trabalho com mais duas pessoas. Elas vêm e vão.
Principalmente vão. Mas nesses últimos quatro meses eu tenho trabalhado com um
senhorzinho simpático e uma menina espevitada. A única coisa que ambos têm em
comum é a paixão por falar de suas respectivas vidas. Um gosto quase que
universal entre os funcionários do cinema. Que por alguma razão eu não me
enquadro. A verdade é que eu gosto muito de pessoas, porém não sei conviver com
elas.
- Me dá um Fanta? Laranja. Bem gelada! Pode encher o copo de gelo, eu não ligo. Sabe, eu sinto
tanto calor no verão.
- Acho que todo mundo anda sentindo calor esses dias.
Não era a primeira vez que essa menina vinha aqui, também
não era por isso que ela falava demais. Percebi logo de primeira que ela é
daquele tipo de pessoa que faz da fala um esporte e é muito boa nele. Quando
ela fica quieta dá para prestar atenção nos seus olhos, eles também são cheios
de expressão e parecem que vai entrar em ebulição a qualquer momento, como se
algo incrível estivesse prestes a acontecer. Então ela começa a falar.
- Menos você, né? Que sorte! Vive aqui nesse ar condicionado
estupendo.
- É.
- Melhor Fanta da
minha vida! Pior que eu tenho essa sensação toda santa Fanta. É engraçado, não
é? Quando alguma coisa repetitiva não deixa de te surpreender.
Ela vai pelo corredor da Sala 2 entre longos goles do
liquido laranja e eu sou deixada pensando nas coisas engraçadas da vida. Eu sou
calorenta. Tem vezes que até mesmo sob esse ar condicionado estupendo eu sinto
calor nas situações de nervosismo. Como agora. Tenho plena consciência de que a
menina falou como brincadeira e eu não interpretei como nada além, mas como
minha mente precisa de pouco incentivo para começar a fazer conexões, penso na
minha casa. Eu tenho uma. Pouca coisa acontece por lá, embora aquele seja o
lugar que eu passo a maior parte do meu tempo, fico sempre dividida entre o
sono e as tarefas do dia a dia. Tenho a impressão que minha vida só acontece
aqui. Através da vida dos outros.
- Eu quero um chocolate.
- Eles ficam todos naquela vitrine.
- Estão pela hora da morte! Você sabe que esses preços são
um absurdo?
- Sei.
- Deveria ser contra os princípios de qualquer pessoa
trabalhar num lugar com preços tão exorbitantes quanto esse.
Encolho os ombros diante da raiva de outra menina ruiva. Eu
pouco posso fazer em relação aos produtos que vendo a não ser vendê-los. Muito
menos acho necessário colocar em dúvida meu emprego por discordar da política tarifária
do estabelecimento. Todos têm a opção de não comprar. Até porque, logo na
esquina tem uma loja de doce onde vende tudo mais barato.
- Então me dá um M&M – diz a menina ruiva ao tirar uma
nota de dez reais de uma carteira zebrada.
- Com ou sem amendoim?
- Com. Óbvio.
Não sei o que cresce mais exponencialmente, se a banalização
da grosseria ou o número de meninas ruivas nessa cidade. Não sou ignorante a
ponto de achar que as duas coisas caminham lado a lado.
A grosseria eu posso classificar como autoconfiança, de uma
pessoa ser tão à vontade com ela mesma que não tem problema em se mostrar da
pior forma diante dos outros, posso pensar assim desde que essa forma não me
atinja, é claro. Já sobre fazer parte do clube minoritário dos enferrujados, imagino
que todos os novos pertencentes devem se sentir especiais. Eu sei que eu me
sinto. Embora eu não me considere ruiva, apenas “uma pessoa de cabelo vermelho”
proveniente do movimento roqueiro num tom que já saiu de moda, mas que ainda
consegue ser melhor que a cor original de rato do meu cabelo.
- Uma pipoca grande e salgada – um homem colocou fim aos
meus pensamentos vaidosos como todo homem costuma fazer, mesmo que na maioria
das vezes o fundo na minha vaidade seja para agradar um deles.
E a julgar pela mulher ao lado daquele homem, a vaidade dela
deveria ser um dos fatores que o agradava. Ela fazia a linha estonteante, que
sempre deixa a gente sem saber se a pessoa é bonita mesmo ou é só consequência
de bons tratos. Ela tem acessórios lindos e pediu uma Coca-Cola light.
- Só tem Zero, pode ser?
- Por favor.
Por favor é uma palavra mágica, igualzinho as mães falam
pros seus filhos no momento da aprendizagem. Tão mágica que são duas e se
transformam em uma sem perder o poder.
- Uma pipoca doce, pufavor.
- Favor, me dê uma água sem gás – pede um ancião cheio dos
bons costumes.
E assim a tarde segue e se deixa virar noite sem que eu
perceba, até que... A última sessão.
- Um expresso, por favor. Duplo.
- Um ou dois?
- É melhor dois – ele diz ao seguir o meu conselho e
acompanhar meu estado de espírito, por mais abstrato que isso seja.
Eu ainda não consegui desvendá-lo. Pelo menos uma vez por
semana ele vem aqui, sempre na última sessão, além disso, não deixa de tomar
seus dois expressos duplos e toda vez passa antes pela opção de pedir apenas um
antes de se decidir pelo segundo. É difícil enquadrar uma pessoa que se
comporta assim em alguma categoria e quando o segundo café termina de encher o
copinho de isopor, eu ainda reviro meus conceitos mentais.
- Deu pra você perceber que eu sou alguém com muito sono.
- Ou que o filme que você vai ver é muito chato.
- Na verdade, são as duas coisas.
- Então, acho que não seria conveniente te desejar bom
filme.
- Claro que seria – ele responde depois de tomar um gole do
café sem por açúcar – bons desejos podem fazer pequenos milagres.
Essa foi uma frase cafona. Fora isso, não sei se gosto quando
não consigo adivinhar uma pessoa e ela se responde para mim com suas próprias
palavras. Creio que me dá um sentimento de impotência. E potencial para outros.
O dia
Hoje é domingo, o dia mais movimentado da casa. E como tudo
nessa vida, isso tem seus prós e contras. Podia-se ver um festival de padrões:
os casais, os filhos pirracentos que me dão até medo de pensar no que eu vou
fazer quando for a minha vez de ter que lidar com um desses. Talvez eu nem
tenha que lidar, posso terminar tão sozinha quanto estou agora. Tem gente pior
do que eu.
- Mas eu quero,
mamãe!! Eu quero, quero muito!
- Outro dia a mamãe compra pra você.
- Mas eu quero agora.
Agora! Agora! Eu quero agora – o menininho loiro até que poderia parecer ser
bonito, se não estivesse quase púrpura e com o rosto contorcido num choro sem
lágrimas que só produzia barulho e irritação nas pessoas ao redor. Eu inclusa.
A pobre mãe coça a cabeça sem saber o que fazer. A pobre mãe
pelo visto não é tão pobre assim, pois coloca uma nota de cinqüenta reais na
mão do menino que correu para comprar o que ele tanto queria. Desse jeito a mãe
conseguiu estancar o choro estridente do filho, certamente também criou para si
um monstro, porque a criança não é boba e deve ter percebido que esse era o
melhor modo de conseguir satisfazer seus desejos imediatos. Eu sei que os meus
estão satisfeitos, o burburinho pacífico no saguão me trouxe de volta à
placidez. E quando me lembro que amanhã é o meu dia de ver um filme, minha
satisfação parece completa.
Como a primeira e a última sessão nos dias de semana são
especialmente vazias, a direção do cinema libera um de nós a cada dia para ver
um filme de nossa escolha. Minha escolha sempre que envolve luta ou tiros, se
possível os dois. É uma pena que eu já tenha visto todos os filmes do gênero
que estão em cartaz. Seria uma tremenda quebra de tradição desperdiçar o meu
dia de filme com uma comédia romântica. Tenho muita consideração por tradições,
porque na maioria das vezes que se sai de uma é para algo pior.
- A gente pode querer uma pipoca grande? Mas você pode
dividir o conteúdo dela em dois sacos pequenos?
Não tentei esconder meu olhar de estranhamento. Tem coisas
que simplesmente não são normais. E eu não sou nenhuma Embaixadora da Normalidade
ou algo do tipo. Só gosto de buscar nas coisas uma ligação com a coerência. Acho
que não é pedir muito.
- Sabe, é pra evitar o desperdício, nós dois não comemos a
pipoca grande inteira. É um costume que a gente tem.
Sem pestanejar faço o que me é pedido. Cada um com seus
costumes. Ainda que eu deteste assumir que contra o desperdício não há nada afazer.
Pelo menos não nesse cinema de classe média alta.
Logo que eu comecei a trabalhar aqui isso foi o que me
chamou mais a atenção. Quanto dessa pipoca que eu faço chover nessa máquina tão
bem iluminada vai parar no lixo? “Boa parte dela”, foi a resposta que eu consegui
depois de uma semana. As pessoas deixam, enjoam e não querem saber.
- Faz parte da natureza humana – disse uma das meninas que
trabalhou comigo quando eu comecei.
Minha natureza me faz pegar dois terços de um saco de pipoca
pequena quando vou ver meu filme. Que é o que me satisfaz. Ainda por cima me incentivo
a pagar por ele, de forma que o valor ao montinho de pipoca se torne ainda
maior. Devo ter aprendido isso com o Pequeno Príncipe. Para o resto do mundo
não faz diferença nenhuma, assim como os costumes do casal, mas se nós
deixarmos de valorizar nossas pequenas interferências no meio, nossas vidas
perdem o sentido.
- Sei que pode parecer estranho, mas você pode me dar uma
pipoca doce, por favor?
É claro que é estranho. Estamos num domingo, não é nem a
última sessão e ele quer comprar pipoca?! Olho em volta dele para me certificar
se ele não estava acompanhado. Uma criança, uma mulher, um adolescente
grudento, qualquer um que possa me
justificar daquela reviravolta que ele se tornou. Não tinha ninguém.
- Vim ver uma animação. Julgo ser importante entrar no
clima.
- Boa sorte com sua mudança de hábito.
Se o cara dos dois expressos duplos pode aparecer aqui num
domingo e querer pipoca doce, tudo pode acontecer. Entrego a ele seu pedido sem
saber o que pode vir depois.
- Estou entrando num novo regime – ele declara – Um regime
de mudança, por isso não comecei na segunda como todos os regimes costumam
iniciar. Fora isso, não é um regime de comida, ao contrário do que possa
parecer.
- Até porque, você não precisa perder peso.
Ele olha para si e
sorri satisfeito. Outra vez eu não consigo entendê-lo. É uma sensação
angustiante. Principalmente por saber que existem possibilidades de ele se
explicar com palavras. Eu posso não gostar do que vou ouvir. Ou pior...
- O peso é uma das poucas que eu não me preocupo em corrigir
em mim. Tenho vivido de um modo estranho. E não digo isso em comparação com a
vida dos outros, foi só uma sensação que me bateu... Você gosta de levar uma
vida solitária?
- Gosto.
- Eu também. Mas não podemos negar que de tempos em tempos
tudo fica bem monótono e é aí que meu regime entra em ação. Toda vez que as
coisas ficarem desinteressantes eu vou quebrar a rotina. Boom! Sair em pleno
dia de descanso, comer muito açúcar e te perguntar se além de trabalhar no
cinema você têm permissão para ver os filmes. Você tem? Permissão, isto é, para
ver os filmes.
- Tenho, só de vez em quando. Em média uma vez por semana.
A partir desse momento me surge uma certeza: meu rosto está
quase igualado ao tom do meu cabelo. Não sou uma pessoa que tem medo de falar
com os outros como se deve. Isso acontece porque, no geral, as pessoas não
sabem como falar comigo do modo certo. Por isso respondo a altura. Mas esse
cara sabe. Eu não sou só uma atendente, sou alguém com quem se pode conversar.
E isso meio que me desarma.
- Você se importaria se eu fosse com você essa semana?
- Acho que você se
importaria. Eu vou amanhã, na última sessão e como já vi todos os filmes legais
de ação, eu vou ser obrigada a ver um filme chato, tipo esses cults que você
assiste junto com seus dois cafés. Tudo vai bem de encontro com as tradições
que você está tentando fugir.
- Não vai fazer parte da minha tradição se eu for
acompanhado, isto é, de uma pessoa.
Ponto para ele. Fazia sentido. Eu sairia do meu costume de
ver um filme violento com dois terços de um saco de pipoca e participaria na
tradição dele, porém, a minha entrada iria significar a sua saída. Jogando
ambos num território novo. Dava para ver que nenhum de nós dois éramos adeptos
a novidades. Ele usa suéteres estilo vovô mesmo quando não faz tanto frio.
Mas saber em qual direção dar um passo adiante é mais
difícil do que voltar atrás. Em casos de solidão, quase sempre é possível
voltar atrás, pois ficar sozinho é uma opção sua, ter companhia depende de
outro. E esse outro que está aqui espera uma resposta.
- Não sei. Não sei nem seu nome.
- Guilherme.
Assenti com a cabeça. O que queria dizer sim. Também queria
dizer não para todas as horas que passei atrás desse balcão vendo o mundo
acontecer. Não vou negar que acho divertido observar a vida e tentar entender
as pessoas e o modo maluco que às vezes elas agem. Mas me passou pela cabeça
que viver a vida seja mais interessante.
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Tava na dúvida se o meu primeiro post do ano seria uma reclamação ou um texto. Aí pensei que tenho o resto do ano inteiro pra fazer reclamações. Não é sempre que faço textos mais longos tipo esse. A ideia foi doada pela Fernanda Campos do
Uma dose de café. E as fotos tão bonitas que eu não dei conta de tirar são da
Ana B. Ilustrações aka louca dos gatos.