O começo do fim
Ela veio para essa cidade para se colocar no mundo. Tinha
beleza e planos de ser modelo. O tio do seu vizinho, lá na sua antiga
cidadezinha, tinha lhe dado um endereço de alguém com que falar. Seria um bom
começo.
Ele vivia nessa cidade, mas
queria mudar o mundo inteiro. Tudo ao seu redor parecia bem idiota. As pessoas,
a política, o sistema de ensino... Ele pensava nisso enquanto batia a caneta em
cima da folha de caderno vazia durante uma aula e outra da faculdade.
Dois dias depois eles se
encontraram. Aí foi o começo de tudo. Era uma cidade grande, mesmo assim seus
olhares se cruzaram como se fosse aquele tipo de coisa que tinha que acontecer na vida de uma pessoa. Ou de duas. Aconteceu.
Trocaram ideias e logo depois fluídos. Foi ótimo.
No dia seguinte, A Protagonista
acordou atrasada para a seleção que o amigo do tio do seu vizinho tinha
conseguido. Ela ficou nervosa e teve vontade de quebrar coisas. Era tudo sua
culpa. Não deveria ter se divertido até tão tarde. O rapaz acordou atordoado
pela ressaca e pela percepção de movimento, ainda assim, e sob qualquer
circunstância, ele era um bom apaziguador. Tinha seus meios. Fez com que ela
respirasse, tomasse algo para olhar a situação sob outro ângulo “Não é o fim
mundo. Você é mulher! Sempre vai poder dizer que não está se sentindo bem por
conta de problemas femininos e acabar deixando o cara sem graça. Não é isso que
vocês sempre fazem?”
“Não sou boa com mentiras.”
“Honestamente, você não está se
sentindo bem, está?”
A resposta era não. Sua cabeça
doía e seu centro balançava numa sensação de mar. Fortalecida pelo mal estar
ela pegou o telefone e fez o que tinha que ser feito, o amigo do tio do seu
vizinho agiu conforme o esperado. Permitiu que ela participasse da seleção desde
que chegasse lá em meia hora.
O Antagonista, que se manteve ao
seu lado durante toda a ligação, viu o quanto ela se agitava com a perspectiva
de seu futuro começar em menos de trinta minutos. Com a melhor das intenções
resolveu dar a ela outro calmante para caso aparecesse alguma emergência pelo
caminho. Apareceu. Do nada, um engarrafamento danado numa rua secundária que
ela não sabia o nome nem se era perto. Então ela tomou a pílula com um gole de
água, sentiu como se uma pedra viajasse em seu interior. Ela gostava de viajar.
Mais controlada, A Protagonista conseguiu chegar a tempo, porém, não foi uma
das selecionadas.
“Você não é exatamente o que
estamos procurando.”
“Também, pudera!” ela pensava ao
se observar no espelho. O que se busca de uma modelo numa seleção, é beleza. E
naquele momento ela tinha olheiras, lábios ressecados e um olhar vidrado.
“Haverão outra oportunidades”
disse o amigo do tio do seu ex-vizinho “Não há razão para ficar abatida.”
Mas ela não estava abatida,
estava acalmada. E muito agradecida por isso. Tanto que antes de voltar para o
seu apartamento que seu pai alugou por um mês até que as coisas se acertassem,
ela resolveu que iria dar uma passada na casa daquele rapaz para agradecer a
hospitalidade e perguntar se, por um acaso, ele não tinha outro comprimidinho
daqueles.
Já era ruim o bastante ela ter
perdido sua primeira seleção, não ajudaria em nada ela perder a cabeça também. Ele
disse que poderia ajudar, se ela não se importasse em esperar quarenta minutos.
Ela tinha quarenta minutos, e, aparente, a noite toda. O calmante chegou por um
entregador de farmácia. A calma através do rádio. Com uma música antiga com ar
de sofisticação que mais tarde nessa mesma noite ela chegou a descobrir a
intérprete, mas, que devido às outras práticas noturnas, não ficou retido em
sua memória. Assim como tantos outros nomes e eventos a partir de então.
Aquela não foi a última noite que
A Antagonista passou naquele apartamentinho aconchegante em Pinheiros. O
Protagonista era uma boa companhia para todas as horas, mesmo quando
assoberbado de estudos.
“Se você despreza as instituições
de ensino, por que perde tanto tempo estudando?”
“Tenho que conhecer o máximo
possível do mundo para saber o que vou mudar nele. O estudo é o primeiro passo
de um plano muito bem estruturado.”
“Você não tem o semblante de quem
anda na trilha de realização do maior plano da sua vida.” A suspeita é
confirmada quando suas mãos apertam a tensão nos ombros dele. Uma massagem
seria bem-vinda.
“Têm coisas que são difíceis de
aprender.”
“Então, você deveria abrir sua
mente.”
Em cima do livro ela jogou um
saquinho com erva. Lembrança de casa. E mesmo tendo maconha nas letras da sua
página, O Protagonista teve a sensação de ver tudo mais nítido. Era hora de
deixar um pouco de lado a teoria das Ciências Sociais para socializar de
verdade.
Ele quis saber da Antagonista
desde quando e com que frequência ela fumava. Algumas vezes ele pensava se
tinha sido ele quem lhe apresentou essa a rota de fuga. Alguns viam o costume
com maus olhos e ele não queria ser má influência para ninguém. Contudo, a
resposta dela foi tão tranquilizadora quanto um trago, “Acho que é muito
importante experimentar de tudo pelo menos uma vez. É assim que eu formo meus
conceitos. Pra mim é a forma mais autêntica”.
Mas tudo na sua cidadezinha de
interior era quase nada. De modo que já experimentara maconha quatro vezes,
mesmo que o alvo da sua maior curiosidade ainda fosse o cigarro. De menta.
Quem cultivava a erva era seu
antigo vizinho. Numa plantação modesta apenas para fins pessoais e amigos. Ela
era uma grande amiga, por isso antes de partir o ex-vizinho ensacou cinquenta
gramas daquilo que tinha de melhor. Caso ela estivesse precisada de um consolo
com toque de outra dimensão. No momento, ela achava que quem precisava desse
tipo de consolo era O Protagonista, então fez pra ele o mais lindo dos baseados
que fez na vida. Se isso não fosse uma declaração de sentimentos, ela não sabia
mais o que era.
Fumaram juntos como todas as
outras coisas que andavam fazendo. Sentados no chão da sala, passavam de um
para o outro. De início suas mãos colidiam com espasmos de uma sensação
agradável. Pouco tempo depois todo o resto colidiu.
Não dava para diferenciar, sob o
efeito da droga, se aquela sensação fazia parte da própria onda ou a
incandescência de uma atração recém descoberta. Ou até mesmo algo maior, amor
ou uma coisa dessas. Nenhum dos dois conseguiria dizer, só estavam de acordo
que independente do que fosse, era algo bom.
O meio do fim
Um mês se passou e nada da menina conseguir um trabalho.
Então, teve que desocupar o apartamento que seu pai alugou. Não que ela ficasse
muito por lá. Assim teve um motivo para ficar de vez no apartamento do rapaz.
Há males que vem para o bem, seu pai dizia muito isso e ele sempre estava certo.
Ia ser melhor assim.
Por outro lado, talvez as coisas melhorassem logo. A falta
de dinheiro é um mal que assola pessoas em todas as cidades do mundo, grandes e
pequenas, mas tinha uma solução muito simples: Dinheiro.
Ela tinha um teste esta tarde. E, para variar, estava se
sentindo confiante dessa vez. Não tomou nada além de água. Dormiu nove horas
seguidas. Maquiou-se tão bem que nem dava para perceber que era maquiagem.
Sorriu para o espelho. O sorriso refletiu em seus olhos. Sinal de boa sorte.
Adivinhar sinais não é o que se pode chamar de ciência
exata. Só que quando A Protagonista interpretava um sinal, ela geralmente
acertava. Foi assim que ela conseguiu sua primeira seleção. E ganhou uma
bolada.
Eles tinham que comemorar,
pelo caminho ela pensou em maneiras. Nenhuma delas chegou perto da efusão do
abraço dele quando recebeu a notícia. Ninguém nunca tinha ficado tão feliz por
ela. Ela tinha, é claro, o amor incondicional de seus pais, mesmo que nesse
quesito eles não a apoiassem completamente, na verdade, nem sequer a entendia.
Mas aquele rapaz que a esmagava, fazia tudo por ela apesar das condições. Nunca
aceite nada de estranhos. Um passo de cada vez. Azar no amor. Nada disso fazia
parte do que eles tinham.
Ela sentia a necessidade de retribuir a felicidade que
encontrava nele, por isso trouxe da rua um saquinho repleto de Felicidades Instantâneas
para incrementar as comemorações.
O Protagonista não tinha como deixá-la mais próxima de si do
que ela já estava. Ainda assim, ele queria mais. Compreendia a magnitude do
alívio que ela deveria estar sentindo, pois sua própria vida era baseada na
procura dessa sensação. Raramente ele alcançava. Mas saber da capacidade dela
em fazer as coisas acontecerem tão rápido lhe dava uma satisfação que ia além
das palavras. O dinheiro ajudaria, e não era só isso, o principal era ela estar
no caminho exato que escolheu para sua vida. Deveria ser uma felicidade que nem
o melhor Saquinho de Felicidade Instantânea poderia trazer. Pois primeira
felicidade nascia no presente e se estendia até o futuro com uma promessa de
progresso, já a felicidade ensacada agia no momento e borrava o sentimento
quando ele se tornava passado, adiando as dores para o futuro.
Fora as inúmeras razões de sua felicidade. Contudo, O
Protagonista não conseguia evitar em meio a todos os bons sentimentos, a
constatação de que a vitória dela funcionava como uma nota-lembrete de seu
próprio fracasso. Ou falta de progresso. O que era um pensamento horrível!
Embora comum a muitos. Ele não era como todos. Por isso tentava afogar tais
pensamentos ao trazer a menina para ainda mais perto.
O Protagonista tinha uma mente brilhante e todos sabiam
disso. Seus vizinhos e amigos o observavam com admiração e sempre à espera de
qual seria seu próximo feito. Cursava duas faculdades, uma com bolsa integral
na melhor faculdade de Relações Internacionais de São Paulo. A família ficava
orgulhosa de dar todo o suporte. A mãe alimentava esperanças de ele se tornar o
Presidente da República, ele certamente tinha potencial, mas seu pai preferia
manter suas expectativas mais humildes; se contentaria com um cargo no
Ministério.
Viver sob o holofote de tanta atenção era o que deixava o protagonista
tão angustiado em primeiro lugar; logo depois vinha o medo de suas certezas se
tornarem incertas. Como daquela vez que ele pensou que o amor era lindo e teve
seu coração partido. Aí estava um dos temas em que sua opinião mudava de tempos
em tempos. Como ele poderia esperar que o resto das suas outras convicções se
perpetuasse? De vez em quando ele pensava que o único mundo que ele mudaria
seria o dele. Para pior. Às vezes ele se cobrava demais.
Tinha horas em que sua cabeça saia de controle e entrava
numa cadeia de pensamentos que se deixados correndo soltos, tinham potencial
destrutivos. A maneira mais eficaz de interromper o processo era se dopar. Foi
praticando consigo mesmo que ele se aprimorou na arte de apaziguar e uma vez
apaziguado ele poderia voltar sem problemas aos seus estudos.
Não era assim que a arte funcionava para A Antagonista. Aí
morava a grande divergência dos dois. Enquanto para ele tudo servia para
remediar momentaneamente suas angustias irremediáveis, com ela era outra história.
“Vamos nos divertir agora ou deixamos para outro dia?”
Ela balançava o saquinho de um lado para o outro como o
pêndulo de um relógio antiquado. O tempo passava rápido, mas nunca era tarde
demais para se divertir. A mensagem da menina, apesar de simples, foi uma
grande realização, a qual ele reagiu instintivamente ao arrancar o pacotinho
das mãos dela e separar o conteúdo em carreiras. Era hora de dar uma pausa nos
questionamentos sobre quanto tempo falta para chegar naquele lugar em que ele
nunca esteve.
Para A Vilã não tinha nada melhor do que estar fora de si e
com ele dentro. Teve a impressão de que esteve assim por dias. E que poderia
ficar para sempre. No entanto, não podia confiar na sua percepção, ela andou
muito distorcida. Tampouco queria perguntar ao rapaz, pois ele tinha entrado em
outro ciclo de culpa.
“Agora que você já provou de tudo ao menos uma vez espero
que esteja feliz com seus conceitos. Porque temos que parar. Já chega. São
tempos de concentração.”
Em Tempos de Concentração tudo incomodava o rapaz, coisa que
atrapalhava o objetivo da menina de se manter relaxada sempre. Preocupação gera
rugas e ninguém contrata uma modelo toda enrugada. Não que ela estivesse
preocupada, na verdade, naquele momento ela não tinha nada além de drogas na
cabeça. Mas era um incômodo ele pensar que tinha responsabilidade pela loucura
dela. Era inegável que o rapaz tinha aberto as portas para um novo mundo de
lugares e substâncias, contudo, a decisão de cruzar tais portões foi
inteiramente dela. E se ela quis continuar a viagem, foi porque achou boa. Sentia
que naquela euforia era o seu lugar. Ou por um acaso o objetivo da vida não era
a felicidade? Ela era feliz assim. Agora que eles tinham provado tudo o que
estava ao alcance deles, ela ainda não tinha vontade de parar. Foi como ele
disse, algumas coisas são complicadas de aprender. Ela queria formar mais
conceitos. Precisava de mais.
Eram tempos difíceis para a concentração. O rapaz acreditava
que o estudo era uma questão de hábito. Que ele tinha perdido. E o retorno é
sempre mais difícil que a saída. Sua cadeira começou a funcionar como um
assento ejetor o qual ele não conseguia ficar muito. Grande parte das tardes ele
caminhava de um lado para o outro do apartamento, que não tinha muito espaço para
desencaminhar suas impaciências, então ele ia andar na rua, o que só piorava,
pois pessoas felizes e apressadas andavam por todas as direções. Elas estavam todas
indo para algum lugar. Ele estava a esmo.
Não se tratava só de dar contar de duas faculdades, a bolsa
de estudos também precisava ser mantida. E fora as obrigações, estudar para ele
costumava ser uma renovação em seu repertório de objetivos, mais ou menos como
ele ouvia dizer que certos escritores tinham ideias para suas histórias lendo
outros livros. Apenas por manter a engrenagem da imaginação funcionando. É o
movimento que impulsiona o movimento. O Protagonista começou a se indagar se a
sua engrenagem não estava com defeito.
“Ficar nervoso desse jeito não vai te levar a lugar nenhum”
a menina dizia toda vez que ele voltava das suas andanças com o olhar
desvairado. O pior é que ela estava certa. Por mais que ele quisesse sentar na
cadeira e tatuar assuntos e conteúdos na sua cabeça, não conseguiria e sabia
que não conseguiria. A cabeça já estava cheia com outras coisas e precisava ser
esvaziada. “Tenho que relaxar” declarava o rapaz ao ir buscar dos materiais
necessários.
Estudar deixou de ser uma motivação para se tornar uma
preocupação. A partir de então, ele se sentava na cadeira e ser primeiro
pensamento era sobre quanto tempo demoraria até ele não agüentar mais e
precisar relaxar. Os minutos se tornavam cada vez menores.
O fim
Outro mês se passou sem que A Protagonista conseguisse outro
trabalho. Coisa que não entrava na sua cabeça já que tinha perdido três quilos.
Era para ter sido um sinal de sorte. Ela não poderia estar mais errada. O
Antagonista fez com que eles se mudassem para um apartamento menor e mais
afastado, portanto mais barato. O dinheiro que os pais dele mandavam não dava
para pagar o aluguel e tudo o que eles precisavam durante o mês. Eles
precisavam cada vez de mais e ele era inteligente o suficiente para não criar
dívidas. Além do mais, o mercado imobiliário vivia em constante aumento de
taxas e não era justo eles que sacrificassem o modo de vida deles só para poder
viver em um lugar decente. Os dois ficariam bem em qualquer lugar desde que
estivessem juntos.
Uma semana depois da mudança ele perdeu a bolsa na faculdade
de Relações Internacionais. A Protagonista tentou consolá-lo com palavras e
ações, nada deu muito certo. Mas ele não ficou tão triste depois de terminar de
esfregar o pó na gengiva.
Como já tinha dado errado ele não precisava perder mais seu tempo
se preocupando sobre alguma coisa dar errado. Começava a ver as coisas pelo
lado bom. Também diminuiria um ônibus xexelento em seu percurso diário. Brindou
a isso.
Eventualmente o rapaz errava a mão nas doses e passava mal.
Como aconteceu nesse dia. Sorte a dele que A Protagonista era mais cuidadosa e
poder ficar vinte e quatro horas à disposição.
Em dias seguintes a esses infortúnios ele acordava
desorientado com a dúvida se está morto ou vivo. Sua primeira reação
inteligente é investigar algo ou alguém conhecido. Dessa vez ele estava num
buraco e quase não reconheceu a menina deitada perto dele. O corpo que tinha
sido esguio agora tendia para o esquálido, o rosto se contorcia num provável
pesadelo. Apresentava as feições gastas, não por ação do tempo, por algo mais
mórbido.
Ela nunca conseguiria outro trabalho como modelo. Mas ele a
amava mesmo assim. Mais assim. Do mesmo jeito que ela o amava independente de
ele ser inteligente ou estar ficando tão idiota quanto aqueles que ele
desprezava.
O resto que sobrou do seu intelecto o impedia de falar as
palavras que rondavam sua cabeça. Até porque, seu conhecimento indicava que
sempre que ditas, tais palavras tinham o efeito reverso. De qualquer forma, sua
mente ecoava um “Vamos ficar juntos até o fim” que ao olhar para A Protagonista
adormecida ele notou que o fim não estava longe.
Pegou a menina do chão a colocou em cima da cama de
solteiro, onde ambos deveriam estar dormindo, ainda era noite. No meio do
caminho os olhos dela se entreabriram e estavam vermelhos, ela passou a mão
pela testa dele como quem checa a temperatura de uma criança. Para ver se está
tudo certo. Logo ela voltou a pegar no sono e ele voltou a pensar. Nada
importava muito agora, tudo já tinha meio que acabado. Antes mesmo de virarem
cinzas seus sonhos viraram fumaça, numa perfeita ordem de combustão.
Em resumo, eles encontraram o amor. E perderam todo o resto.