terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

todo mundo ama fazer carta

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Todo mundo ama fazer carta, então decidi que eu vou fazer a minha. Quero ser legal também. Pego papel e a folha de caderno mais bonita que tenho – é da Hello Kitty  arranco com cuidado, pois não quero nenhum rasgo nas laterais essa carta tem que ser perfeita. Igual a de todo mundo.

Escrevo um nome qualquer, essas cartas sempre tem um destinatário difuso e o meu é um tal de Cher Antoine, que sempre colocava nas minhas redações quando eu era obrigada a fazer qualquer epístola que nunca chegaria ao seu destino. Eu odiava essa história e aposto que Cher Antoine concordava comigo. Aí começo a me perguntar se essas cartas que todo mundo anda escrevendo por aí pra que o resto do mundo saiba de forma tão íntima o sentimento – real ou fictício – do escritor, tampouco chegam aos seus destinos. 

Na verdade, minha principal dúvida é se elas sequer são enviadas.
Fui ao correio esses dias, tinha que enviar uma coisa. À minha frente muita gente tinha coisas para enviar, nenhuma dessas coisas eram cartas, quem não tinha coisa, tinha contas, quem não tinha nenhum dos dois tinha alguma coisa para pegar. Do nada avistei um homem com envelope na mão, ele estava bem concentrado no pedaço de papel, devia ter muitos sentimentos contidos ali dentro. Não havia jeito de eu saber se ele era um escritor de cartas a não ser que eu perguntasse. E foi isso mesmo que eu fiz. Ele me olhou incrédulo e depois preocupado, eu fiquei lá parada esperando uma resposta e seria de mau tom se ele não me respondesse.

- É um documento - ele falou à contra gosto enfiando o envelope dentro de uma pasta, acho que ele pensou que eu iria roubá-lo. Mas eu sou honesta.

Voltando ao desenvolvimento da minha carta, eu coloquei nela palavras muito bonitas. Eu falei de "amor" e sobre "abrir/fechar meu coração", aparentemente nessas cartas o coração funciona como um baú. Tipo aqueles que guardam as cartas nas fotos de cores pasteis que acompanham os textos de cartas que são escritos em letras serifadas. Tudo isso é muito confuso. Meu coração não funciona como um baú.

Mais ou menos nessa hora eu parei e pensei: Seria muito mais fácil mandar um email! Ninguém me manda emails sentimentais! Tudo que eu recebo é propaganda, arquivos ou vírus. Ok, assumo que gosto das propagandas, geralmente elas são promoções de livros. Eu acabo me maravilhando com os preços baixos das coisas que eu não preciso, mas acabo que compro. E perco o meu foco. Toda vez que entro no email tenho uma esperançazinha de que alguém tenha falado comigo, raramente alguém fala. Suponho que todos estejam muito ocupados escrevendo suas cartas. 

Por isso que agora eu também estou escrevendo a minha, ela tem letra bonita e tomara que todo mundo me ache muito sensível no final. O que todo mundo vai achar é de grande importância em cartas desse tipo, não importa quem é o destinatário, nem mesmo importa o que eu penso. Se é que penso. O bacana é o resto do mundo gostar e dizer como eu escrevo bem.

Antes de eu terminar a carta eu paro e penso. Qual é o objetivo disso? É meio que um teste de quão profunda ou rasa eu sou?! Me soa meio bobo. E se eu dissesse que não me importa o que os outros pensam? Não seria muito original, não é? Então é melhor não dizer nada, apenas pego a carta e rasgo em mil pedacinhos e logo depois jogo pro alto. A sensação é maravilhosa. 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

tempos de vacas magras

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Tem aquela cena do seu filme preferido que de tempos em tempos você põe pra repetir, algumas horas são no DVD, outras na sua cabeça, mas ela nunca deixa de passar. Isto é, de tempos em tempos. A minha cena do filme preferido na verdade se tornou a minha vida. Minha vida no passado. Lá tá frio e eu tô meio que deitada na minha cama tranquilíssima com meu edredom bang on the door, em cima de mim mora o meu computador porque eu tô escrevendo o último capítulo da minha segunda história. Treze páginas numa tacada só. Boom!, temos um recorde. Que hoje, quatro anos depois não foi quebrado. Não vejo nada de errado em querer viver/viver voltando nisso de novo. Mas alguma coisa não tá certa.
Nostalgia é algo tão bom. Todo mundo gosta de dar uma volta no passado e geralmente o resultado é benéfico. Mas é no resultado fora do geral que eu me encontro. Simples assim: minha vida está parada e minha cabeça só consegue olhar pra trás. Uma pessoa que anda olhando pra trás tem grandes chances de tropeçar, cair e entrar um farpa no olho. Então eu continuo parada, preferindo evitar a fadiga.
São os tempos das vacas magras, a vida passa diante dos meus olhos e tudo o que eu faço é aplaudir. Nem mesmo meus projetos de escrita estão vingando nesse "tempo que eu tirei pra escrever". Me pergunto que merda é essa que eu tô fazendo. Espero pelas respostas.
Perceber esse movimento ou falta de não muda nada, já dizia Alex Turner em No Buses com "...realize that it won't change a thing", ele falou bem e bonito como sempre. Eu posso muito bem continuar sentada aqui, sem escrever nem perto de treze páginas, mas pelo menos fiz esse post.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

POP!



Um dia qualquer

Num mundo cheio de pontos de vista privilegiados, eu não estou exatamente satisfeita com o meu, ainda assim, parada aonde sempre fico, consigo ver uma coisa ou outra que acho interessante, ou pelo menos me diverte. 
- Doce ou salgada?
- Doce ou salgada? – o homem à minha frente perguntar pra mulher ao seu lado.
- Escolhe você.
- Escolhe você – ele rebate.
- Foi você quem me convidou.
- Foi você a convidada, então, escolha.
- Ai, não sei.
- Sabe sim.
- Doce.
- É a minha preferida também.
Entrego um saco médio de pipoca doce para a mulher e tento mascarar um sorriso. Eles são tão tipicamente O Casal no Segundo Encontro que não demorou nem o tempo de aprovar a transação do cartão platinado do cara para eu descobrir qual era a classificação deles. Sei que pode parecer ruim que ao invés de estar colocando milho na máquina, eu fique aqui pensando de forma categórica na vida das pessoas. Mas é o que eu faço. Trabalho no quiosque de pipoca do cinema e daqui gosto de observar todo o tipo de gente.
- Vocês têm manteiga light?
 - Infelizmente não.
- Como assim?!Que absurdo! Vocês tinham que trabalhar com uma opção light.
- A opção mais light que a gente tem é a sem manteiga.
- Você tem permissão para falar comigo dessa maneira? – a menina ruiva vira as costas ultrajada e sai batendo o pé.
Vou pegar uma coca-cola para outro cliente. O liquido pálido, muito mais claro que o original, cai da máquina enquanto eu percebo que não adianta me estressar. O que a menina ruiva disse não foi pessoal. O mau humor tem se tornado uma emoção recorrente até mesmo nos cinemas.
- Aqui vende café?
- Temos expresso.
- Me dá um. Duplo – ele irrompe em um bocejo monstruoso sem se preocupar em por a mão na frente – Talvez seja melhor dois.
Apertei os botões e esperei pelo melhor cheiro do mundo. Pode ser que eu esteja exagerando, mas toda vez que o café se preparava para sair e levava seus costumeiros dois segundos e meio, a expectativa me fazia ter certeza de aquele era o melhor cheiro do mundo. Então ele inundava o quiosque e eu tinha vontade de sorrir. Às vezes eu sorria mesmo. Por exemplo agora.
- Obrigado.
Aquela era a última sessão da noite, então eu comecei a limpar tudo que tinha ao alcance dos meus braços e imaginação até dar a hora de fechar. Acabaram-se as pessoas, com isso começa o tédio.



Uns 27 dias depois do dia qualquer
O fechamento e a abertura do quiosque são as horas mais monótonas pra mim. E hoje, no começo de um novo dia, não é diferente. O cinema abre ao meio dia, só que na maioria das vezes a primeira sessão frequentada é a da casa das duas. São uma e meia.
Eu o trabalho com mais duas pessoas. Elas vêm e vão. Principalmente vão. Mas nesses últimos quatro meses eu tenho trabalhado com um senhorzinho simpático e uma menina espevitada. A única coisa que ambos têm em comum é a paixão por falar de suas respectivas vidas. Um gosto quase que universal entre os funcionários do cinema. Que por alguma razão eu não me enquadro. A verdade é que eu gosto muito de pessoas, porém não sei conviver com elas.
- Me dá um Fanta? Laranja. Bem gelada! Pode encher o copo de gelo, eu não ligo. Sabe, eu sinto tanto calor no verão.
- Acho que todo mundo anda sentindo calor esses dias.
Não era a primeira vez que essa menina vinha aqui, também não era por isso que ela falava demais. Percebi logo de primeira que ela é daquele tipo de pessoa que faz da fala um esporte e é muito boa nele. Quando ela fica quieta dá para prestar atenção nos seus olhos, eles também são cheios de expressão e parecem que vai entrar em ebulição a qualquer momento, como se algo incrível estivesse prestes a acontecer. Então ela começa a falar.
- Menos você, né? Que sorte! Vive aqui nesse ar condicionado estupendo.
- É.
- Melhor Fanta da minha vida! Pior que eu tenho essa sensação toda santa Fanta. É engraçado, não é? Quando alguma coisa repetitiva não deixa de te surpreender.
Ela vai pelo corredor da Sala 2 entre longos goles do liquido laranja e eu sou deixada pensando nas coisas engraçadas da vida. Eu sou calorenta. Tem vezes que até mesmo sob esse ar condicionado estupendo eu sinto calor nas situações de nervosismo. Como agora. Tenho plena consciência de que a menina falou como brincadeira e eu não interpretei como nada além, mas como minha mente precisa de pouco incentivo para começar a fazer conexões, penso na minha casa. Eu tenho uma. Pouca coisa acontece por lá, embora aquele seja o lugar que eu passo a maior parte do meu tempo, fico sempre dividida entre o sono e as tarefas do dia a dia. Tenho a impressão que minha vida só acontece aqui. Através da vida dos outros.
- Eu quero um chocolate.
- Eles ficam todos naquela vitrine.
- Estão pela hora da morte! Você sabe que esses preços são um absurdo?
- Sei.
- Deveria ser contra os princípios de qualquer pessoa trabalhar num lugar com preços tão exorbitantes quanto esse.
Encolho os ombros diante da raiva de outra menina ruiva. Eu pouco posso fazer em relação aos produtos que vendo a não ser vendê-los. Muito menos acho necessário colocar em dúvida meu emprego por discordar da política tarifária do estabelecimento. Todos têm a opção de não comprar. Até porque, logo na esquina tem uma loja de doce onde vende tudo mais barato.
- Então me dá um M&M – diz a menina ruiva ao tirar uma nota de dez reais de uma carteira zebrada.
- Com ou sem amendoim?
- Com. Óbvio.
Não sei o que cresce mais exponencialmente, se a banalização da grosseria ou o número de meninas ruivas nessa cidade. Não sou ignorante a ponto de achar que as duas coisas caminham lado a lado.
A grosseria eu posso classificar como autoconfiança, de uma pessoa ser tão à vontade com ela mesma que não tem problema em se mostrar da pior forma diante dos outros, posso pensar assim desde que essa forma não me atinja, é claro. Já sobre fazer parte do clube minoritário dos enferrujados, imagino que todos os novos pertencentes devem se sentir especiais. Eu sei que eu me sinto. Embora eu não me considere ruiva, apenas “uma pessoa de cabelo vermelho” proveniente do movimento roqueiro num tom que já saiu de moda, mas que ainda consegue ser melhor que a cor original de rato do meu cabelo.
- Uma pipoca grande e salgada – um homem colocou fim aos meus pensamentos vaidosos como todo homem costuma fazer, mesmo que na maioria das vezes o fundo na minha vaidade seja para agradar um deles.
E a julgar pela mulher ao lado daquele homem, a vaidade dela deveria ser um dos fatores que o agradava. Ela fazia a linha estonteante, que sempre deixa a gente sem saber se a pessoa é bonita mesmo ou é só consequência de bons tratos. Ela tem acessórios lindos e pediu uma Coca-Cola light.
- Só tem Zero, pode ser?
- Por favor.
Por favor é uma palavra mágica, igualzinho as mães falam pros seus filhos no momento da aprendizagem. Tão mágica que são duas e se transformam em uma sem perder o poder.
- Uma pipoca doce, pufavor.
- Favor, me dê uma água sem gás – pede um ancião cheio dos bons costumes.
E assim a tarde segue e se deixa virar noite sem que eu perceba, até que... A última sessão.
- Um expresso, por favor. Duplo.
- Um ou dois?
- É melhor dois – ele diz ao seguir o meu conselho e acompanhar meu estado de espírito, por mais abstrato que isso seja.
Eu ainda não consegui desvendá-lo. Pelo menos uma vez por semana ele vem aqui, sempre na última sessão, além disso, não deixa de tomar seus dois expressos duplos e toda vez passa antes pela opção de pedir apenas um antes de se decidir pelo segundo. É difícil enquadrar uma pessoa que se comporta assim em alguma categoria e quando o segundo café termina de encher o copinho de isopor, eu ainda reviro meus conceitos mentais.
- Deu pra você perceber que eu sou alguém com muito sono.
- Ou que o filme que você vai ver é muito chato.
- Na verdade, são as duas coisas.
- Então, acho que não seria conveniente te desejar bom filme.
- Claro que seria – ele responde depois de tomar um gole do café sem por açúcar – bons desejos podem fazer pequenos milagres.
Essa foi uma frase cafona. Fora isso, não sei se gosto quando não consigo adivinhar uma pessoa e ela se responde para mim com suas próprias palavras. Creio que me dá um sentimento de impotência. E potencial para outros.  



O dia
Hoje é domingo, o dia mais movimentado da casa. E como tudo nessa vida, isso tem seus prós e contras. Podia-se ver um festival de padrões: os casais, os filhos pirracentos que me dão até medo de pensar no que eu vou fazer quando for a minha vez de ter que lidar com um desses. Talvez eu nem tenha que lidar, posso terminar tão sozinha quanto estou agora. Tem gente pior do que eu.
- Mas eu quero, mamãe!! Eu quero, quero muito!
- Outro dia a mamãe compra pra você.
- Mas eu quero agora. Agora! Agora! Eu quero agora – o menininho loiro até que poderia parecer ser bonito, se não estivesse quase púrpura e com o rosto contorcido num choro sem lágrimas que só produzia barulho e irritação nas pessoas ao redor. Eu inclusa.
A pobre mãe coça a cabeça sem saber o que fazer. A pobre mãe pelo visto não é tão pobre assim, pois coloca uma nota de cinqüenta reais na mão do menino que correu para comprar o que ele tanto queria. Desse jeito a mãe conseguiu estancar o choro estridente do filho, certamente também criou para si um monstro, porque a criança não é boba e deve ter percebido que esse era o melhor modo de conseguir satisfazer seus desejos imediatos. Eu sei que os meus estão satisfeitos, o burburinho pacífico no saguão me trouxe de volta à placidez. E quando me lembro que amanhã é o meu dia de ver um filme, minha satisfação parece completa.
Como a primeira e a última sessão nos dias de semana são especialmente vazias, a direção do cinema libera um de nós a cada dia para ver um filme de nossa escolha. Minha escolha sempre que envolve luta ou tiros, se possível os dois. É uma pena que eu já tenha visto todos os filmes do gênero que estão em cartaz. Seria uma tremenda quebra de tradição desperdiçar o meu dia de filme com uma comédia romântica. Tenho muita consideração por tradições, porque na maioria das vezes que se sai de uma é para algo pior.
- A gente pode querer uma pipoca grande? Mas você pode dividir o conteúdo dela em dois sacos pequenos?
Não tentei esconder meu olhar de estranhamento. Tem coisas que simplesmente não são normais. E eu não sou nenhuma Embaixadora da Normalidade ou algo do tipo. Só gosto de buscar nas coisas uma ligação com a coerência. Acho que não é pedir muito.
- Sabe, é pra evitar o desperdício, nós dois não comemos a pipoca grande inteira. É um costume que a gente tem.
Sem pestanejar faço o que me é pedido. Cada um com seus costumes. Ainda que eu deteste assumir que contra o desperdício não há nada afazer. Pelo menos não nesse cinema de classe média alta.
Logo que eu comecei a trabalhar aqui isso foi o que me chamou mais a atenção. Quanto dessa pipoca que eu faço chover nessa máquina tão bem iluminada vai parar no lixo? “Boa parte dela”, foi a resposta que eu consegui depois de uma semana. As pessoas deixam, enjoam e não querem saber.
- Faz parte da natureza humana – disse uma das meninas que trabalhou comigo quando eu comecei.
Minha natureza me faz pegar dois terços de um saco de pipoca pequena quando vou ver meu filme. Que é o que me satisfaz. Ainda por cima me incentivo a pagar por ele, de forma que o valor ao montinho de pipoca se torne ainda maior. Devo ter aprendido isso com o Pequeno Príncipe. Para o resto do mundo não faz diferença nenhuma, assim como os costumes do casal, mas se nós deixarmos de valorizar nossas pequenas interferências no meio, nossas vidas perdem o sentido.  
- Sei que pode parecer estranho, mas você pode me dar uma pipoca doce, por favor?
É claro que é estranho. Estamos num domingo, não é nem a última sessão e ele quer comprar pipoca?! Olho em volta dele para me certificar se ele não estava acompanhado. Uma criança, uma mulher, um adolescente grudento, qualquer um que possa me justificar daquela reviravolta que ele se tornou. Não tinha ninguém.
- Vim ver uma animação. Julgo ser importante entrar no clima.
- Boa sorte com sua mudança de hábito.
Se o cara dos dois expressos duplos pode aparecer aqui num domingo e querer pipoca doce, tudo pode acontecer. Entrego a ele seu pedido sem saber o que pode vir depois.
- Estou entrando num novo regime – ele declara – Um regime de mudança, por isso não comecei na segunda como todos os regimes costumam iniciar. Fora isso, não é um regime de comida, ao contrário do que possa parecer.
- Até porque, você não precisa perder peso.
 Ele olha para si e sorri satisfeito. Outra vez eu não consigo entendê-lo. É uma sensação angustiante. Principalmente por saber que existem possibilidades de ele se explicar com palavras. Eu posso não gostar do que vou ouvir. Ou pior...
- O peso é uma das poucas que eu não me preocupo em corrigir em mim. Tenho vivido de um modo estranho. E não digo isso em comparação com a vida dos outros, foi só uma sensação que me bateu... Você gosta de levar uma vida solitária?
- Gosto.
- Eu também. Mas não podemos negar que de tempos em tempos tudo fica bem monótono e é aí que meu regime entra em ação. Toda vez que as coisas ficarem desinteressantes eu vou quebrar a rotina. Boom! Sair em pleno dia de descanso, comer muito açúcar e te perguntar se além de trabalhar no cinema você têm permissão para ver os filmes. Você tem? Permissão, isto é, para ver os filmes.
- Tenho, só de vez em quando. Em média uma vez por semana.
A partir desse momento me surge uma certeza: meu rosto está quase igualado ao tom do meu cabelo. Não sou uma pessoa que tem medo de falar com os outros como se deve. Isso acontece porque, no geral, as pessoas não sabem como falar comigo do modo certo. Por isso respondo a altura. Mas esse cara sabe. Eu não sou só uma atendente, sou alguém com quem se pode conversar. E isso meio que me desarma.
- Você se importaria se eu fosse com você essa semana?
- Acho que você se importaria. Eu vou amanhã, na última sessão e como já vi todos os filmes legais de ação, eu vou ser obrigada a ver um filme chato, tipo esses cults que você assiste junto com seus dois cafés. Tudo vai bem de encontro com as tradições que você está tentando fugir.
- Não vai fazer parte da minha tradição se eu for acompanhado, isto é, de uma pessoa.
Ponto para ele. Fazia sentido. Eu sairia do meu costume de ver um filme violento com dois terços de um saco de pipoca e participaria na tradição dele, porém, a minha entrada iria significar a sua saída. Jogando ambos num território novo. Dava para ver que nenhum de nós dois éramos adeptos a novidades. Ele usa suéteres estilo vovô mesmo quando não faz tanto frio.
Mas saber em qual direção dar um passo adiante é mais difícil do que voltar atrás. Em casos de solidão, quase sempre é possível voltar atrás, pois ficar sozinho é uma opção sua, ter companhia depende de outro. E esse outro que está aqui espera uma resposta.
- Não sei. Não sei nem seu nome.
- Guilherme.

Assenti com a cabeça. O que queria dizer sim. Também queria dizer não para todas as horas que passei atrás desse balcão vendo o mundo acontecer. Não vou negar que acho divertido observar a vida e tentar entender as pessoas e o modo maluco que às vezes elas agem. Mas me passou pela cabeça que viver a vida seja mais interessante.  
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Tava na dúvida se o meu primeiro post do ano seria uma reclamação ou um texto. Aí pensei que tenho o resto do ano inteiro pra fazer reclamações. Não é sempre que faço textos mais longos tipo esse. A ideia foi doada pela Fernanda Campos do Uma dose de café. E as fotos tão bonitas que eu não dei conta de tirar são da Ana B. Ilustrações aka louca dos gatos.